Permitindo-se Esquecer

São 6:30h da manhã. O ônibus está lotado e naturalmente aromatizado com fragâncias que espantam qualquer coisa. O motorista parecia ser professor do curso de "Como Derrubar Passageiros em Viagem".

A mulher da frente:

- Ah, milha filha...Essa Igreja Batista é melhor que a Universal, lá tem muita gentalha, gente baixa.
- É mesmo, o pessoal da Batista é mais selecionado.

Eu estava com fome, com sono e indisposto.

- E, você vai pescar que dia? Olhe...da outra vez você me roubou três peixes! hahaha - o cidadão ao telefone.

De repente, a visão do inferno. O termômetro da rua anunciava 30ºC . Pedi pra morrer. Seis e meia da manhã à trinta graus! Parece que ficou mais quente depois de ler. Comecei a suar. O odor vizinho piorou. E a visão contrária a do inferno, se fez. Os pés mais lindos que já vi em toda minha existência. Até a velha faladeira eu esqueci. Foi a salvação. A dona, acho que nem olhei. Cada segundo olhando aquilo foi deliciosamente aproveitado. Feito em forma única. Os dedos milimetricamente proporcionais. Nada de feridas. Tão liso como um pé de recém-nascido. Sandália rasteira do jeito que a Bahia gosta. A sexta estrela do hotel. O mundo ficou bem melhor. Cheguei a me perguntar se valia a pena aproveitar aqueles pés. E...

- Mas, a Universal é melhor. - a velha.

Tapa na nuca e:

- Porra, minha tia, cala a boca! - um sonho que quis realizar.

Fiquei calado, e voltei aos pés. Eles não estavam mais lá. Agora eu quis bater na velha mesmo. Onde foram? Sairam assim andando? tsc... Perdi aquela maravilha. Tudo o que eu mais queria, não tenho mais. Tomei providência. Conversei com a velha, e era gente boa, mesmo. Gosto de sinceridade. O vizinho me contou várias histórias de pescaria, até me convidou pra uma. Me pareceu tudo mentira. Abri mais janelas e o odor foi sumindo, até o vento ajudou no calor. Não vi mais nenhum termômetro.

E o que farei com aqueles pés? Esquecerei. Eram lindos, perfeitos. E, valeu a pena aproveitar aqueles pés. Sim. Com certeza. Mas, não me servem mais. Voltar atrás, pra que? Já devem ter arranjado outros olhos, eles não merecem ser lembrados. Poucas coisas merecem ser. Talvez não seja difícil achar outro. Tenho tantos pés à minha volta, e às vezes não percebo isto.